cem dias com ela.

Curitiba, Brasil



— Karol, acorda. Karol?! Vamos sequestrar a Tchuca?
— Mmm? Vamos!

Foi assim que acordei a Karolyna num sábado chuvoso de Junho deste ano. O motivo? Bem… você! A cachorra da vizinha do nosso prédio e que estava dormindo encolhida no centro do quintal enquanto a chuva forte caía. Mais cinza do que o céu naquele dia estava o meu coração. Não foram dias fáceis; e aquela chuva toda foi a gota d’água de um copo que começara a encher semanas antes.

I. Thuca

Thuca foi o nome que te deram por nascer nos 00’s. Uma cadela de quatorze anos de idade, da raça labrador, e que se tornou nossa mascote assim que nos mudamos, há quase um ano, para o apartamento número dois na Avenida Marechal Floriano. Você sempre se mostrou ser muito dócil, e dos quinze metros que separam nossa sacada do quintal da casa da megera que é a sua dona, sentíamos seu carinho e transmitíamos muito amor para você.

Na verdade todos do lado de cá, moradores do nosso prédio, faziam isso: eram petiscos, bolachinhas, carnes, e tudo mais que estivéssemos comendo e lembrássemos de você. Era assim ou você - com quase trinta quilos - morreria de fome se dependesse d’A Bruxa. “Uma vez joguei uns pedações de polenta que se espatifaram no chão e ela [você] não quis nem saber. Ficou me olhando com cara de quem dizia ‘ei, agora eu quero o molho.’” contou certa vez, aos risos, nosso querido vizinho Toni.

II. Tumor

Os tempos de alegria haviam passado, e você, já em sua idade canina um pouco avançada, desenvolveu um tumor que se espalhou para seis das oito mamas que possui. O tumor, um dia antes do sequestro, havia inflamado muito, chegando a “estourar” pus e sangue no quintal. A megera, sua dona, ligou para o veterinário e queria por fim na sua vida para “evitar sofrimento e dor”. É fácil julgá-la da perspectiva aqui do quarto andar, mas aquilo para mim foi mesmo é covardia, sabe. Você não deve lembrar, mas o veterinário chegou; trouxe seus equipamentos e, com os pés numa pequena poça de sangue no quintal te examinou e disse à megera que não poderia fazer a eutanásia. Você estava relativamente saudável apesar de tudo e se tratassem da inflamação - agora ferida -, logo você poderia se recuperar e ter boa qualidade de vida, mesmo com o tumor.

Você não ouvia isso por causa dos seus problemas auditivos, mas muitas vezes ouvimos aqui de cima a megera dizendo: “não vejo a hora dessa cachorra morrer!”. O desejo dela não havia se realizado, e eu não esperaria mais um dia para deixar que isso acontecesse.

Bem cedo de manhã, quando presenciei que você não tinha sido recolhida e que estava enroladinha na chuva, logo imaginei o pior. Imaginei que você já havia partido para descansar. A dor foi intensa e não segurei as lágrimas e os soluços. Você, como labradora deve me entender, sabe que sou um bobalhão emotivo. Sentei-me no chão como quem tenta conceber porque a vida é assim. Não tive perdas muito próximas em minha família ou amigos e a morte é realmente uma coisa que me afeta muito. Desejo veemente que um dia consiga entender a morte, ou ao menos aceitá-la.

A dor no peito logo se tornou uma chama de alegria quando consegui perceber, aqui do quarto andar, que você ainda respirava forte. Engoli as lágrimas e me pus a pensar em tomar medidas reais para te ajudar. Pensei um pouco e logo conclui: te roubar, ou sequestrar, era a solução! Seria simples já que a garagem do nosso prédio faz divisa com o terreno d’A Bruxa, então joguei um cobertor velho que estava em nossa sacada lá para baixo, onde eu poderia te colocar e fazer uma “trouxinha de labrador”. Eu sei que você tinha uns trinta quilos, estava com uma ferida aberta na garriba e estava debilitada, mas eu tinha que tentar. Precisava de ajuda, então fui ao quarto e depois de um beijo na testa, acordei a Karol no estilo “vem que no caminho te explico”.

III. Sequestro

Mesmo sendo sempre coração, desta vez a Karol foi metade cabeça e logo aterrizou meus pés no chão a respeito do seu sequestro; seria ilegal e o pior, poderíamos te machucar ainda mais. A chuva não cessava e estávamos tentando um persuadir ao outro sobre o certo a fazer. Eu, já pendurado no muro fazendo cálculos de mecânica clássica, logo levei um susto quando a megera, sua dona, que sempre acorda depois do almoço, já havia levantado e estava indo em direção a janela para abrir a cortina. Pulei do muro antes que ela me visse, e, sem lamentar muito, dei ouvidos ao que a Karol sugeria e era mais sensato a fazer. Batemos palmas diversas vezes e depois de alguns minutos a megera saiu de casa.

— Como está a Thuca? - perguntamos de você.
— Ah, não está nada bem…
— Mas porque ela está dormindo ali fora, na chuva?
— Não conseguimos trazer ela para dentro ontem, por isso deixamos ali. - “deixaram para morrer, né, filhos da puta.”, pensei.

Expliquei então para sua antiga dona que se fosse para você não ser cuidada e ficasse na chuva, nós mesmos cuidaríamos de você. Mentimos que te levaríamos para a chácara de um amigo e que conhecíamos bons veterinários. Era tudo conversa, mas precisávamos convencê-la. As limitações de um apartamento para um cão do seu porte não seriam problema se te déssemos carinho, comida e cama quentinha. As limitações financeiras também não: um casal com ideias freeganistas sempre dá um jeito de fazer milagre com qualquer orçamento.

Foi só uma semana depois que a megera, sua dona, tomou uma decisão e deixou um bilhetinho embaixo da nossa porta numa folha amarela mal rasgada e com umas letras tortas, dizendo que poderíamos ficar com você. Fomos te buscar correndo assim que terminamos de ler.

Primeiros dias da Filha depois da recuperação da ferida no tumor mamário.

IV. Família

Você lembra disso? Agora você tinha um novo lar e a gente podia te abraçar forte. Fizemos uma super casinha para você na lavanderia com paletes e cobertores antigos. Você amava, principalmente pela manhã quando o sol batia em cheio naquele lado do prédio. Também colocamos um colchão de solteiro perto da nossa cama caso você quisesse dormir por lá. Desculpa falar, mas seu ronco atingia uns bons decíbeis seguidos de alguns pequenos espasmos saúdaveis. Karol e eu ríamos vendo aquilo e ficávamos pensando no que você talvez pudesse estar sonhando.

Ricardo, o mesmo veterinário que recusou te sacrificar sabendo que você ainda podia ficar bem, ia a cada quinze dias em nossa casa ver como você estava. Pelas consultas, cobrava valores simbólicos, entendendo que nosso orçamento era apertado e que gastaríamos um tanto mais com medicamentos. Mesmo sendo durão, ele foi incrível. Não sabemos o que teríamos feito sem a ajuda dele.

No maior estilo dono coruja e insuportável de cachorro, nós começamos a te chamar de Filha; você gostava? Você se recuperou em mais ou menos quinze dias e logo ficou bem - sem ferida e com o tumor mais discreto nas mamas. Assim, todos os dias, passéavamos, brincávamos, descíamos e - você odiava essa parte - subíamos quatro lances de escada. A responsabilidade de cuidar de você, uma senhorinha doente de trinta quilos, pesava em meus ombros. Porém, cada vez que você balançava seu rabinho de alegria, eu era completo de alegria também.

V. Tempestade

Passamos dois meses incríveis. Foi aí, nós últimos trinta dias, que tudo começou a ir ladeira abaixo. Percebemos que o seu tumor aumentava de tamanho a cada semana; suas patinhas também ficavam inchadas e você já não conseguia subir as escadas, lembra? Você ficava sem apetite e todo dia tínhamos que incrementar sua refeição para que você conseguisse comer.

Tinha dias em que você estava bem e outros muito mal. Quando você se animava eu te carregava escada abaixo para darmos uma volta pelo quarteirão. Nossa, era muito díficil te segurar sem te machucar. Você tinha quase a metade do meu peso mas me virava, né? Você amava tanto passear, parecia que queria aproveitar cada passo, cada cheirinho novo… Sinto muito por você não poder ter feito muito isso na última década. Você também gostava de correr no começo, mas agora já não conseguia mais.

Doía muito saber que o seu tumor não poderia ser retirado em razão da sua idade. Uma cirurgia seria - além de muito cara - quase que uma sentença de morte. Você já era uma velhinha para um cão de porte grande. Era tarde demais; não havia como voltar atrás. Eu sabia que seu tempo estava acabando e o sentimento de impotência me corroía muito.

Fizemos mais exames e aumentamos sua medicação; ficamos felizes enquanto você apresentava uma gradativa melhora. Mas como depois da calmaria o que vem é a tempestade, o dilúvio não demorou a chegar. Numa manhã de domingo, fui te acordar e percebi que havia vômito no seu cobertor. Vocẽ estava fraca e com os olhinhos murchos, mas ainda balançou o rabinho quando me viu. Ai meu deus como eu te amava. Liguei para o seu veterinário mas ele só poderia vir no dia seguinte, segunda.

Ficamos do seu lado o dia todo, dando soro na seringa e um purê leve de frango e batata para que você não ficasse mais fraca. Você parecia estar odiando muito eu forçando aquelas coisas sua garganta abaixo. Me desculpa por isso também. Você só demonstrava que queria levantar para fazer xixi e eu te ajudava.

No dia seguinte você não melhorou e o veterinário coletou um pouco do seu sangue, para depois constatar que você estava realmente muito fraca. O mesmo anti-inflamatório que te ajudava contra a inflamação do tumor também fazia mal para o seu fígado. Tudo isso somado com sua idade culminava num quadro muito complicado.

Com a ajuda do veterinário e da mãe da Karol, que é enfermeira, davámos soro e ringer lactato direto na sua veia. Suspendemos o anti-inflamatório e regularmente você recebia um remédio anti-vômito. Muito amor ia junto, e eu dormia do seu ladinho naquele colchão, pronto para acordar e trocar a sua bolsa de soro. Eu te abraçava e dizia que tudo ia ficar bem. Sabia que você era forte e tinha sobrevivido à uma crise inflamatória antes, você ia aguentar mais uma vez agora. Infelizmente eu estava errado.

VI. Adeus

Na quarta-feira você já não demonstrava que queria levantar para fazer suas necessidades e também colocava seu líquido biliar para fora. Nós limpávamos mas sabíamos que eram sinais terríveis para uma senhorinha tão vivida feito você. O veterinário foi sincero, e indagou que se quiséssemos, talvez fosse a hora de dizer adeus. Eu ouvia tudo em câmera lenta com uma tristeza muito grande no peito. Eu não queria te deixar partir, mas não queria te ver sofrer mais. Uma injeção iria acabar com a tua dor e a sua consciência, te tornando apenas matéria nesse mundo.

A ordem natural das coisas é tão cruel; mas mais devastador ainda é pensar nos escolhas simples que não tomamos para mudar isso. Ficamos na nossa zona de conforto enquanto há seres sencientes sofrendo. Desculpe chegar tão tarde. Desculpe demorarmos tantos para decidir te adotar.

Você se foi, mas deixou muito aqui. O mundo já não é mais o mesmo para mim. Agora, quando meu caminho cruza com o de um animal, seja humano ou não, me permito admirar sua possibilidade de estar vivo, e me esforço para que, mais do que isso, ele possa se sentir vivo também. Vou levar esse sentimento e a sua lembrança comigo para sempre.

Obrigado por tudo, Filha.